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terça-feira, 29 de junho de 2010

Os ciclos de aprendizagem


"Os desafios postos hoje à escola pública, em decorrência das transformações no mundo do trabalho, nos meios de comunicação, no exercício da cidadania, na busca da preservação do meio ambiente, entre outros, apontam para a necessidade de uma organização de ensino que contemple fundamentalmente a diversidade cultural e individual dos cidadãos e que tenha o desenvolvimento do ser humano como referência para a construção de aprendizagens significativas.

O Brasil, assim como muitos outros países, tem testemunhado a implantação de políticas de longo alcance criadas para tornar a escola mais eficiente e igualitária. Um exemplo disso é a política de ciclos, que objetiva reduzir as altas taxas de reprovação já na fase inicial do Ensino Fundamental, num sistema em que a promoção de uma série para outra dependia dos resultados de avaliações formais (MAINARDES, 2007).

Nesse contexto, esta proposta de trabalho representa uma resposta a esses desafios e uma alternativa ao fortalecimento da ação educativa, fundamentada em pressupostos teóricos de alguns sociólogos como Vitor Henrique Paro, Paulo Freire, Philippe Perrenoud, dentre outros. Em seus argumentos eles destacam a necessidade do redimensionamento do tempo, do espaço escolar e dos propósitos educacionais que virão no sentido de romper com uma cultura escolar fundamentada na lógica conteudista e na pedagogia do isolamento que deverão ser substituídas pela lógica do trabalho coletivo e pela discussão permanente das temáticas educacionais.

O ciclo de aprendizagem aqui defendido permite que os alunos avancem no ciclo sem o medo ou a ameaça da reprovação. É uma concepção de ensino em que a aprendizagem do aluno ocorre sem as rupturas existentes na organização escolar em séries. Nele a aprendizagem torna-se um processo contínuo que ocorre concomitantemente ao desenvolvimento biológico do educando, valorizando a formação global humana (VYGOTSKY, 1998).

O ciclo coloca novos desafios aos professores que aí trabalham: reinventar sua escola enquanto local de trabalho e a si mesmos enquanto pessoas e membros de uma profissão. O desafio está em ousar, fazer um novo cotidiano pedagógico que possa vir a contribuir para o desenvolvimento global do aluno, considerando suas características individuais e culturais, suas individualidades, potencialidades e dificuldades.

A política de ciclos pode representar um progresso importante na democratização do ensino, assim como no avanço para pedagogias ativas e construtivistas, levando a escola a contribuir para a atualização histórico-cultural dos cidadãos."

(Goulart, Beatriz Leite - "Os ciclos de aprendizagem como meio neutralizador do fracasso escolar")

sábado, 26 de junho de 2010

Os mortos são negros e as armas são brancas...


Por José Saramago

Em África, disse alguém, os mortos são negros e as armas são brancas. Seria difícil encontrar uma síntese mais perfeita da sucessão de desastres que foi e continua a ser, desde há séculos, a existência no continente africano. O lugar do mundo onde se crê que a humanidade nasceu não era certamente o paraíso terrestre quando os primeiros “descobridores” europeus ali desembarcaram (ao contrário do que diz o mito bíblico. Adão não foi expulso do éden, simplesmente nunca nele entrou), mas, com a chegada do homem branco abriram-se de par em par, para os negros, as portas do inferno. Essas portas continuam implacavelmente abertas, gerações e gerações de africanos têm sido lançados à fogueira perante a mal disfarçada indiferença ou a impudente cumplicidade da opinião pública mundial. Um milhão de negros mortos pela guerra, pela fome ou por doenças que poderiam ter sido curadas, pesará sempre na balança de qualquer país dominador e ocupará menos espaço nos noticiários que as quinze vítimas de um serial killer. Sabemos que o horror, em todas as suas manifestações, as mais cruéis, as mais atrozes e infames, varre e assombra todos os dias, como uma maldição, o nosso desgraçado planeta, mas África parece ter-se tornado no seu espaço preferido, no seu laboratório experimental, o lugar onde o horror mais à vontade se sente para cometer ofensas que julgaríamos inconcebíveis, como se as populações africanas tivessem sido assinaladas ao nascer com um destino de cobaias, sobre as quais, por definição, todas as violências seriam permitidas, todas as torturas justificadas, todos os crimes absolvidos. Contra o que ingenuamente muitos se obstinam em crer não haverá um tribunal de Deus ou da História para julgar as atrocidades cometidas por homens sobre outros homens. O futuro, sempre tão disponível para decretar essa modalidade de amnistia geral que é o esquecimento disfarçado de perdão, também é hábil em homologar, tácita ou explicitamente, quando tal convenha aos novos arranjos económicos, militares ou políticos, a impunidade por toda a vida aos autores directos e indirectos das mais monstruosas acções contra a carne e o espírito. É um erro entregar ao futuro o encargo de julgar os responsáveis pelo sofrimento das vítimas de agora, porque esse futuro não deixará de fazer também as suas vítimas e igualmente não resistirá à tentação de pospor para um outro futuro ainda mais longínquo o mirífico momento da justiça universal em que muitos de nós fingimos acreditar como a maneira mais fácil, e também a mais hipócrita, de eludir responsabilidades que só a nós nos cabem, a este presente que somos. Pode-se compreender que alguém se desculpe alegando: “Não sabia”, mas é inaceitável que digamos: “Prefiro não saber”. O funcionamento do mundo deixou de ser o completo mistério que foi, as alavancas do mal encontram-se à vista de todos, para as mãos que as manejam já não há luvas bastantes que lhes escondam as manchas de sangue. Deveria portanto ser fácil a qualquer um escolher entre o lado da verdade e o lado da mentira, entre o respeito humano e o desprezo pelo outro, entre os que são pela vida e os que estão contra ela. Infelizmente as coisas nem sempre se passam assim. O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses. Em tais casos não podemos desejar senão que a consciência nos venha sacudir urgentemente por um braço e nos pergunte à queima-roupa: “Aonde vais? Que fazes? Quem julgas tu que és?”. Uma insurreição das consciências livres é o que necessitaríamos. Será ainda possível?